Não poderia ser menos agradável o “presente” que a Justiça Eleitoral do Brasil ganhou em seu 90º aniversário, comemorado na última quinta-feira (24/2): as eleições mais complicadas de sua história. Fake news, Telegram, campanha contra as urnas eletrônicas, federações partidárias… Não são poucos, muito menos pequenos, os obstáculos a serem enfrentados no pleito que vai decidir quem dirigirá o Brasil de 2023 a 2026 (além de governadores, senadores e deputados federais e estaduais), e outros ainda podem aparecer até outubro.
Antes de falar das eleições que virão em alguns meses, porém, um pouco de história: a Justiça Eleitoral brasileira nasceu com a publicação do Código Eleitoral de 1932, uma legítima revolução para o cenário político nacional. Entre outras inovações, o Código permitiu que as mulheres finalmente tivessem o direito de votar e serem votadas no Brasil e tornou o voto obrigatório e secreto por aqui.
A Justiça Eleitoral que veio ao mundo em 24 de fevereiro de 1932 tinha uma estrutura semelhante à atual, com uma corte superior instalada na capital do país (na época, o Rio de Janeiro) e um tribunal regional em cada estado. Mas não demorou muito para que os percalços aparecessem. Em 1937, Getúlio Vargas instituiu o Estado Novo, um regime ditatorial, e acabou com as eleições — e, consequentemente, com a Justiça Eleitoral. As coisas só retornaram ao normal em 1945, quando o país voltou a eleger um presidente. No caso, o general Eurico Gaspar Dutra.
Os 21 anos terríveis da ditadura militar (1964-1985) também foram uma prova de fogo para a Justiça Eleitoral, que sobreviveu. E ela terá de mostrar novamente que é dura na queda neste 2022, do alto de seus 90 anos. Uma eleição que, salvo alguma grande surpresa, colocará frente a frente um presidente da República que se dedica com afinco à tarefa de desacreditar o sistema brasileiro de votações e um ex-presidente que passou recentemente um longo período na prisão não deverá ser menos do que explosiva — o país só espera que não literalmente.
Segundo os especialistas em Direito Eleitoral ouvidos pela ConJur, o maior desafio do Tribunal Superior Eleitoral (e, por consequência, dos Tribunais Regionais Eleitorais) no pleito a ser realizado em outubro é provar o que já provou várias vezes: que o modelo de eleições adotado pelo Brasil é confiável.
“A Justiça Eleitoral nunca foi tão desafiada. Instigada pelo próprio presidente da República, há uma parcela considerável da população que passou a acreditar em fraude no sistema de votação e apuração. E sem nenhuma evidência. É apenas uma teoria conspiratória de baixíssimo sentido lógico”, lamentou o advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, coordenador-geral da Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). “Embora a Justiça Eleitoral tivesse tudo para ser reconhecida como a mais estruturada e eficiente do mundo democrático, o desafio passou a ser restaurar a crença na ‘ciência da eleição’ pelas urnas eletrônicas. É triste, mas é aí que está o grande desafio”.
“A Justiça Eleitoral foi criada em 1932 com vistas a moralizar a eleição e colocar fim às fraudes generalizadas que permeavam o processo eleitoral brasileiro. Desde então, não houve mais qualquer tipo de questionamento envolvendo o processo de realização e apuração das eleições. Recentemente, porém, o presidente da República vem questionando esse processo, o que sem dúvidas torna o atual momento um cenário delicado”, comentou Emma Roberta Palú Bueno, advogada e coordenadora acadêmica da Abradep. “A excelência da Justiça Eleitoral brasileira, pela primeira vez em décadas, vem sendo questionada. Assim, me parece que a desinformação envolvendo a credibilidade e a integridade da Justiça Eleitoral deve ser o maior desafio neste ano”.
E, como se tudo isso ainda não fosse suficiente, é preciso lidar com as consequências da pandemia da Covid-19, que ainda vão afetar as eleições, segundo Caroline Vieira Lacerda, sócia-proprietária do escritório Lacerda e Vieira de Carvalho Advogados e ex-vice-diretora da Escola Judiciária Eleitoral do TSE.
“Todas as eleições representam desafios, mas as próximas estão inseridas em um ambiente de pandemia, que compromete desde a fabricação de insumos para a urna eletrônica até o debate eleitoral, e em um momento de crescimento do uso da desinformação. Então, as eleições de 2022 tendem a ser diferentes de todas as anteriores, com alto grau de judicialização de temas e discussão sobre conceitos jurídicos de ampla significação, como, por exemplo, quais são os limites da liberdade de expressão”.
Na avaliação de Ângela Cignachi Baeta Neves, do escritório Demarest Advogados e segunda secretária-geral do Instituto Brasileiro de Direito Eleirotal (Ibrade), a alta circulação de notícias falsas na época da eleição, que já foi um problema gigantesco no pleito de 2018, pode ser ainda maior neste ano. Por isso, a Justiça Eleitoral terá a tarefa não só de garantir ao país que as eleições serão limpas, mas também de não sofrer um abalo em sua imagem.
“Até pouco tempo atrás, a preocupação maior da Justiça Eleitoral era administrar as eleições, coibir a ocorrência de abusos e tentar manter o equilíbrio de forças entre os candidatos. Agora, além disso, há a preocupação a respeito da credibilidade do nosso sistema eleitoral. É a questão da imagem da instituição. Ou seja, o trabalho é prévio, de informação e transparência, o que já está sendo feito”.
Pulso firme
Ângela, como se vê, considera que o TSE, pelo menos até agora, tem realizado um bom trabalho na defesa de sua credibilidade. E seus colegas pensam da mesma maneira. Todos eles acreditam que a Justiça Eleitoral está enfrentando com firmeza os obstáculos que não param de surgir em seu caminho.
“São reiterados os exemplos que se têm de que a estrutura da Justiça Eleitoral é suficiente, adequada, qualificada e preparada para o enfrentamento dos grandes desafios existentes. Isso não significa que não possa evoluir e se qualificar ainda mais. Todavia, os cidadãos podem se sentir seguros de que nossa Justiça especializada tem totais condições de, mais uma vez, passar a tranquilidade e a confiança de que o resultado das eleições vai refletir a vontade livre e soberana dos eleitores”, opinou Gustavo Bohrer Paim, sócio do escritório Paim, Lo Pumo e Santos Advogados e ex-vice-prefeito de Porto Alegre.
“Acredito que a Justiça Eleitoral brasileira vive um momento delicado. Em especial pelo cenário político do Brasil, vem sofrendo diversos ataques e ameaças. No entanto, está se saindo muito bem, com coragem e rebatendo tudo sempre com informações verdadeiras”, reforçou Janaina Rolemberg Fraga, advogada com atuação no TSE e nos TREs.
Dor de cabeça
Os elogios fartos ao trabalho dos magistrados das cortes eleitorais, porém, não significam que não haja problemas a serem superados. Gustavo Paim, por exemplo, acredita que é preciso tomar muito cuidado com o que ele chama de “ativismo judicial”.
“É claro que, até pelo momento que vivemos, a Justiça Eleitoral tem um ativismo muitas vezes exacerbado, e essa seria uma correção de rumo importante, diminuir o ativismo e buscar mais segurança jurídica”.
Outro calcanhar de Aquiles da Justiça Eleitoral, segundo Luiz Fernando Casagrande Pereira, é o Telegram, aplicativo de troca de mensagens bem mais difícil de controlar do que seus concorrentes e que promete dar muita dor de cabeça ao TSE. Na sexta-feira (25/2), por exemplo, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes ameaçou bloquear o Telegram por 48 horas por não suspender os perfis de alguns usuários que divulgam notícias falsas.
“A Justiça Eleitoral conseguiu dar um salto no arranjo de controle e autorregulação do ecossistema das campanhas na internet e estamos muito mais bem preparados do que em 2018 e 2020. Resta, é verdade, o problema do Telegram. Mas aposto na solução pelo Congresso. O Telegram é um problema nas eleições, mas é também um problema para o país. Não pode haver espaço imune à lei e ao controle jurisdicional”, disse Pereira, com um misto de preocupação e confiança na capacidade dessa distinta senhora de 90 anos para resolver os problemas que nunca deixam de surgir.